domingo, 30 de dezembro de 2012

Fim de ano


Pra se acender fogos de artifício, o procedimento é quase sempre parecido: você o segura com uma mão, acende o isqueiro com a outra, coloca a chama em contato com a pavio e, uma vez aceso, se livra da bomba ou foguete o mais rápido que puder. Muda um pouco de material pra material – um só se acende com fósforo, outro tem uma parte de pólvora exposta ao invés de um pavio --, mas o modo de acender varia muito mais em função da idade de quem acende do que da modalidade do fogo de artifício. Quando se é um pouco mais velho, antes de acender o pavio há todo um trabalho psicológico pra se livrar das falas acumuladas da sua mãe na sua cabeça, contando histórias que ilustravam o quanto soltar fogos era perigoso; dependendo da idade, é necessário até se livrar de lembranças de amigos que realmente queimaram suas mãos, e apanharam das mães em seguida – tudo isso pode atrapalhar sua performance.
Mas, chega um nível de idade em que isso se inverte. Quando se é muito velho, não se tem muito o que perder . É um momento em que as histórias contadas pelas mães não assustam mais. Não assusta mais a ideia de perder um dedo quando é normal passar semanas inteiras sem precisar – ou poder – usar uma das mãos. E, é por isso que Osvaldo está agora com as rodas de sua cadeira enterradas na areia, e segurando pela haste de madeira um desses foguetes grandes que explodem colorido , quando deveria ter no mínimo enterrado a haste na areia, e estar em condições de correr assim que colocasse fogo no pavio.
É difícil explicar como um velho nessas condições conseguiu fugir do hospital e comprar fogos de artifício, mas é fácil explicar como ele está invisível na praia. Com uma falta de energia, típica da região litorânea de São Paulo em dias de altíssima temporada, resta apenas a luz da lua, que causa um reflexo elíptico na careca de Osvaldo, e alguns reflexos em formatos geométricos nas ferragens de sua cadeira de rodas. Quem olhasse para ele jamais veria esses reflexos como parte de um todo, um pouco porque o meio de seu corpo estava completamente apagado, e um pouco porque ninguém na cidade estava sóbrio o suficiente para não interpretar o reflexo curvo como parte da espuma das ondas ao fundo, e os reflexos perto do chão como mais uma oferenda a iemanjá que ainda não saiu da areia.
Osvaldo não tremia, não agora. Era firme, como é firme a mais velha professora de balé ao ensinar balé, por mais Parkinson que ela tenha. Diferentemente das mãos de quem se prepara para desplugar os aparelhos que mantêm a si próprio vivo – ou das de qualquer outro tipo de suicida --, as mãos de Osvaldo estão secas e duras como as de um lavrador, um pedreiro ou um professor que usa giz e lousa em suas aulas. Já fez isso centenas de vezes.
Segurava o foguete com o braço esquerdo formando um arco para a esquerda, de modo que o foguete ficasse mais ou menos da altura de seu rosto – assim poderia ver os propulsores funcionando em todo seu esplendor --, mas sem que seu braço se queimasse com o fogaréu – isso talvez impedisse seus planos.
Ele só soltava fogos no ano novo, não achava justo assustar tanto os animais mais de uma vez por ano – já não bastam os males que causam todos os barulhos do dia-a-dia das cidades à audição apurada de seus moradores involuntários. E também, talvez principalmente, preferia manter uma relação de saudade com sua atividade preferida, como passa uma semana sem se masturbar uma jovem esposa que quer ter seu prazer prolongado ao se relacionar com seu marido tão amado. Nunca passou um ano sequer sem soltar fogos na virada, não por algum significado que a data pudesse ter a alguém, mas pelo prazer das luzes, cores, formas, texturas, sons, etc.
Não teria conseguido manter os braços levantados em tal posição por tanto tempo para qualquer outra atividade, a que, com certeza, estaria menos determinado. Puxou e puxou o gatilho de seu isqueiro octogenário até conseguir uma chama boa o suficiente. Dirigiu a mão direita, que agora tremia um pouco, ao pavio, e a manteve até que o fogo incendiasse a cordinha. Esperou que o fogo percorresse todo seu caminho e, nesse meio tempo, era possível ver algo mais além do reflexo em sua careca. Havia um leve sorriso em seu rosto – não se sabe desde quando --, um misto de paz e conformação, trazido à luz pela chama clara que queimava o pavio.
O fogo chegou à base do foguete, e sua propulsão começou a funcionar. E, como um gato que, mesmo manso, já cansado se ser judiado pela mesma criança, o foguete como que se debatia, forçava um escape. Osvaldo o segurava firme. O fogo queimava cada vez mais a mão esquerda de Osvaldo, queimara seus pelos e derretia agora suas unhas. Mas Osvaldo segurava firme, com a firmeza de uma velha bailarina em seu pliê, ou um velho pedreiro empunhando sua enxada, ou um suicida experiente puxando o gatilho.
Finalmente, como um bicho já sem energia para lutar, o jato do foguete vai aos poucos parando de sair, e parando de queimar, até que finalmente para, num silêncio terrível. Osvaldo pôde, então, ouvir o princípio de uma explosão. Era o som da pólvora no interior do foguete começando a queimar, seguido do som das câmaras que a guardam começando a se expandir com o calor. O som que nem imaginamos existir, por estarmos sempre longe demais da explosão pra perceber. Esse som foi ficando mais e mais agudo, até se assemelhar a um breve assovio.  
Antes do estampido e do clarão da explosão, e ao invés do branco e do vermelho metálico prometidos pelo rótulo do foguete, Osvaldo viu todas as cores de fogos possíveis. Ele experienciou uma sequência de oitenta e uma explosões diferentes, algumas de foguetes iguais. Na nuvem de fumaça de cada explosão, um rápido filme, pequenas memórias, iluminadas pela luz colorida de cada bomba. Ele viu o nascimento de seu irmão do meio; o primeiro aniversário dele; o sorriso – que durou meses – após seu primeiro beijo; o dia em que o foguete atravessou o vidro do carro do senhor Belarmino e, na explosão seguinte, o rosto de bravo de seu pai, que durou todo o ano ao longo do qual ele pagou o concerto; o dia em que conseguiu seu primeiro emprego; o dia em que pagou a primeira prestação da casa; o nascimento de seu filho e seu casamento, na mesma explosão.
E, com o espetáculo mais vermelho do que branco presenciado por alguns transeuntes embriagados nas areias sujas de vidro de alguma praia de Santos, o fim de ano significou para Osvaldo realmente o que na realidade não significa para ninguém: o fim de algo de verdade.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ensaio

Essa feiura aí, do meu lado na foto, vocês sabem, é Vinícius de Moraes, a maior amizade que já tive. Vinícius falava muito de um poeta paraense, que ele dizia ter uma intimidade enorme com Deus: "Ele parava as vezes no meio da rua, e perguntava 'onde o Senhor quer chegar? ando precisando muito do senhor; ajude fulano;'"
Eu não tenho tanta intimidade, mesmo depois do ultimato do meu reumatologista. Mas, de vez em quando, pergunto: "onde o Senhor quer chegar? Levou o Dorival, o Duca, o Vinícius, o Tom e agora o Roberto Silva." Só sobrei eu na cela. De todos os meus companheiros, nenhum aguentou. Eu já nem sei mais se ainda sofro as torturas diárias, se ainda tenho segredos pra revelar, ou se essas dores todas são só efeitos dos choques que a vida já me deu. Não sei se tremo de parkinson ou de medo. Se os cacoetes tá espasmos, derrames ou uma cara de angústia permanente, fruto da permanente angústia. Todos os amigos, todas as pessoas de verdade já foram embora. Só sobrei eu nessa estação de trem lotada, lotada de gente estranha com hábitos vazios.
Essas rugas todas no meu rosto que essa maldita luz azul vertical acentua fazem a gente parecer umas árvores. A velhice seca os nossos olhos. E, se a gente não chora, se não chove no rosto da gente, tudo seca, esturrica, craquela em sulcos como o chão seco da caatinga. Tudo morre – menos nós. Quando se fica velho, volta-se a urinar na cama, volta-se a não ter cabelo nem dentes, mas a única coisa que a gente não volta é a acreditar que choro resolve alguma coisa.
Sempre que abro os olhos pela primeira vez, e nem sempre é dia, vejo tudo se mexendo. Não sei se é minha vista que se descontrola, ou se o mundo é que convulsiona. A sabedoria só nos chega quando já não nos serve de nada, e a coragem pro suicídio só nos chega quando percebemos que não temos mais nada a perder. Mas, eu tremo demais pra puxar um gatilho.
Ainda assim, ao menos uma vez por dia eu esqueço, propositalmente, do remédio pro coração. Minha vida está nas mãos de Deus, mas em uma coisa eu sou melhor que ele: eu sei onde quero chegar – no fim.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Macumba no Condomínio


Foi deixada, solitária
Em um estranho lugar
Uma oferenda a exu
Entre o bloco G e o agá

Seu pano vermelho ao vento
Não exalava o odor de tumba
Comum a semelhantes oferendas:
Deslocada estava a macumba

Será que ali, desacorsoada,
Em chão de propriedade privada,
a pobre macumba seria
quem sabe um dia chutada?

Uma coisa é certa:
Em condomínio de nome
Nem orixá busca oferenda
Sem se anunciar no interfone.

sábado, 28 de julho de 2012

Diários de um novo Condômino


Apartamentos são como casas mal-assombradas. Você ouve o som dos passos no corredor, chegando até você, passando por você, e se encerrando lá atrás, mas não vê nada. Ouve batidas, ruídos, sussurros, gemidos, mas nada acontece no seu cubículo bem localizado com vista pra uma avenida movimentada.
E, nos domingos, o chiado de uma panela de pressão, cheiro de comida, os gritos de criança e as risadas invadem sua mente, e transformam o apartamento num livro de fotos animadas, uma caixa de lembranças de momentos que nunca existiram.
A vida acontece, não lá fora, mas nos outros dentros. E o que sobra a mim são esses vestígios de acontecimentos nas outras dimensões, ecos do atrito de outras vidas.

domingo, 3 de junho de 2012

Êxtase


O banho revela um corpo marcado, arranhado, ensangüentado. É como se eu tivesse sido perseguido por uma fera horrenda, cujos olhos furta-cor refletem o brilho da lua, vertendo pelo caminho uma saliva vermelha, da cor do sangue de tantos outros devorados por sua sede de sofrimento e não a saciaram. Uma fera que, com as mesmas garras que abre caminho entre as árvores e plantas do bosque sombrio que lhe serve de esconderijo, campo de caça e palco de rituais. E a oferenda era eu.
Ao menos, seria o que eu declararia ao júri de um tribunal cheirando a crime e madeira velhos, em que eu precisasse de um álibi e uma justificativa para minhas escaras.
Ou, talvez não. Talvez eu preferisse ser condenado por todos os crimes do mundo, a ter que fui possuído pela fera, e não perseguido por ela. Negar que dela sofrera os mais deliciosos abusos. Negar que seus curtos dedos delicados de moça, como os dos gatos, escondiam garras capazes de rasgar o mais duro coração, mas que em mim se ocuparam apenas de marcar território. Uma fera que não tem nada de horrenda, e que cujo amor, com o suor de nossas camisas, vi se tornar em furor, depois descontrole, riso, choro, estase e por fim – literal e figurado – gozo.
Em meu corpo, tenho as chagas que, diferente das de Cristo, não provam a missão cumprida de trazer amor a todos, e sim a de trazer prazer a uma. Um quase-messias do éros, e não do ágape.
As marcas e arranhões todos compõem, juntos, uma partitura, tocada apenas por suspiros e gemidos, que se sucedem, se intercalam, fazem duetos e, em uníssono, soam o clímax, o gran-finalle, a evidência mater da natureza animalesca do homem: aos que ainda não entenderam, o sexo.

domingo, 1 de abril de 2012

No meu tempo


Eu sou do tempo em que cartas de amor eram a única saída pra a timidez. E todos eram tímidos. No meu tempo, a vida era tão complicada. DVDs de black comprados na feira eram os coreógrafos de qualquer pobre, porque só haviam professores de dança nas escolas de dança. No meu tempo, o amor era só de mãe, mesmo a gente sempre achando que não. Mesmo que a paixão nos visitasse a cada esquina, mesmo que a faísca de qualquer sorriso acendesse uma brasinha no coração. No meu tempo, dor de verdade era arrancar o tampão do dedão no asfalto tentando chutar uma bola. No meu tempo a esquerda era mais esquerda, e a direita era mais direita. Muito embora a única política de que se entendia era a Política da Boa Vizinhança. No meu tempo, o maior desafio que existia era falar paralelepípedo bem rápido, mesmo sem fazer idéia do que essa palavra significa. E as palavras significavam muito. No meu tempo, a medicina era avançada. Eles estavam próximos de descobrir a cura para doenças mortais, como o câncer, a AIDS, a inveja e o amor. No meu tempo, não era difícil fazer a lição de casa, ou não ficar grávida antes dos 15 – difícil mesmo era passar a fase aquática do Mario. E Mario não tinha nada a ver com armário, ou coisa assim. Mario era o que todo mundo queria ser: um cara simples, com super poderes, e que bastava seguir uma lógica simples pra encontrar sua princesa ideal. No meu tempo, já não se faziam mais doce de abóbora como antigamente, geléia como antigamente, chocolate como antigamente; mas, poxa, como a vida era doce!

No meu tempo, nostalgia era coisa de velho. Se hoje em dia está tão na moda, é porque nós, realmente, não temos do que nos orgulhar no presente.

domingo, 11 de março de 2012

Afogando na Umidade

Esses dias vazios, meio chuvosos, me dão um sentimento peculiar. É uma melancolia calada, uma tristeza contida, automáticos ao se depararem com esse clima. É como se o rumor das gotas no meu telhado me sussurrassem ofensas profundas, desilusões amorosas: as reais úlceras da alma. E, ao mesmo tempo, esse ar carregado de umidade sufocasse minhas reações, me impedindo de chorar, como naqueles pesadelos em que nós gritamos a plenos pulmões por nossas mães mas não produzimos som nenhum. Quando nos sentimos assim, só nos resta fechar os olhos, relaxar, e esperar que todas as tristezas e angústias sejam mesmo só um sonho ruim, e que vão desaparecer ao som da primeira vibração do celular sobre a mesa de cabeceira. E, as vezes, elas desaparecem.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Um velho


Hoje eu sou um velho. Só um velho. Se já fui um ladrão, um engenheiro, um especialista; nada disso importa. Não sou mais nada disso. Sou apenas um velho.
A coisa mais difícil em se estar na minha idade é isso: você é uma reencarnação. Quer você acredite ou não na pós-vida, quer você seja ou não espírita, na terceira idade, você é sempre uma reencarnação. Isso porque você sempre já foi algo. Vai ser sempre percebido assim, como alguém que já foi um psicólogo, um astrônomo, um padeiro, como que em vidas passadas. Alguém que já amou, que já sofreu, que já brigou, tudo em uma outra encarnação, chamada juventude. Mas que, hoje, só é um idoso.
O difícil em ser velho é sempre não ser; é sempre já ter, um dia, sido.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O bom da dor é o alívio.


Você não sabia o quão deliciosa era sua cama
Antes de trabalhar o dia inteiro
Não sabia o quão valioso era o silencio
Até morar ao lado de um puteiro
Não apreciava a perfeição da sua mãe
Até a ver numa cama fria
E antes da pior cólica intestinal da sua vida
Não sabia que na sua barriga havia tanta calmaria

Mas esses foram exemplos
De dor depois da felicidade
Coisa a que estamos acostumados,
Nós, que vivemos nas cidades
Outro costume que temos
É de sentir dor todo dia
O dia todo, todo tempo
Como uma eterna procissão ou romaria

Aquela eterna dorzinha de cabeça
O stress de ter que pegar trem
O trem que não funciona direito
O celular que não funciona também
O plano que saúde que não cobre isso e aquilo
E o seguro de vida que só vai servir pra quem não morreu
O despertador do vizinho que acorda você
O contrato que você leu mas não entendeu

O alivio da dor do parto
É o primeiro mamãe que o filho diz
O alivio de trabalhar o ano inteiro
É ver seu décimo terceiro
Fazer sua família feliz

Tenho que evitar pensar nessas coisas
Sobre como é bom o alivio da dor,
Que é ainda mais gostoso
Quanto maior e mais forte a dor for,
Porque Isso me lembra que essas dores todas da vida contemporânea
Juntas configuram a maior dor já sentida,
E me faz pensar o quão gostosa pode ser a morte,
O único e imediato alívio da dor da vida.