segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ensaio

Essa feiura aí, do meu lado na foto, vocês sabem, é Vinícius de Moraes, a maior amizade que já tive. Vinícius falava muito de um poeta paraense, que ele dizia ter uma intimidade enorme com Deus: "Ele parava as vezes no meio da rua, e perguntava 'onde o Senhor quer chegar? ando precisando muito do senhor; ajude fulano;'"
Eu não tenho tanta intimidade, mesmo depois do ultimato do meu reumatologista. Mas, de vez em quando, pergunto: "onde o Senhor quer chegar? Levou o Dorival, o Duca, o Vinícius, o Tom e agora o Roberto Silva." Só sobrei eu na cela. De todos os meus companheiros, nenhum aguentou. Eu já nem sei mais se ainda sofro as torturas diárias, se ainda tenho segredos pra revelar, ou se essas dores todas são só efeitos dos choques que a vida já me deu. Não sei se tremo de parkinson ou de medo. Se os cacoetes tá espasmos, derrames ou uma cara de angústia permanente, fruto da permanente angústia. Todos os amigos, todas as pessoas de verdade já foram embora. Só sobrei eu nessa estação de trem lotada, lotada de gente estranha com hábitos vazios.
Essas rugas todas no meu rosto que essa maldita luz azul vertical acentua fazem a gente parecer umas árvores. A velhice seca os nossos olhos. E, se a gente não chora, se não chove no rosto da gente, tudo seca, esturrica, craquela em sulcos como o chão seco da caatinga. Tudo morre – menos nós. Quando se fica velho, volta-se a urinar na cama, volta-se a não ter cabelo nem dentes, mas a única coisa que a gente não volta é a acreditar que choro resolve alguma coisa.
Sempre que abro os olhos pela primeira vez, e nem sempre é dia, vejo tudo se mexendo. Não sei se é minha vista que se descontrola, ou se o mundo é que convulsiona. A sabedoria só nos chega quando já não nos serve de nada, e a coragem pro suicídio só nos chega quando percebemos que não temos mais nada a perder. Mas, eu tremo demais pra puxar um gatilho.
Ainda assim, ao menos uma vez por dia eu esqueço, propositalmente, do remédio pro coração. Minha vida está nas mãos de Deus, mas em uma coisa eu sou melhor que ele: eu sei onde quero chegar – no fim.

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