Essa feiura aí, do meu lado na foto, vocês
sabem, é Vinícius de Moraes, a maior amizade que já tive. Vinícius
falava muito de um poeta paraense, que ele dizia ter uma intimidade
enorme com Deus: "Ele parava as vezes no meio da rua, e
perguntava 'onde o Senhor quer chegar? ando precisando muito do
senhor; ajude fulano;'"
Eu não tenho tanta intimidade, mesmo depois do
ultimato do meu reumatologista. Mas, de vez em quando, pergunto:
"onde o Senhor quer chegar? Levou o Dorival, o Duca, o Vinícius,
o Tom e agora o Roberto Silva." Só sobrei eu na cela. De todos
os meus companheiros, nenhum aguentou. Eu já nem sei mais se ainda
sofro as torturas diárias, se ainda tenho segredos pra revelar, ou
se essas dores todas são só efeitos dos choques que a vida já me
deu. Não sei se tremo de parkinson ou de medo. Se os cacoetes tá
espasmos, derrames ou uma cara de angústia permanente, fruto da
permanente angústia. Todos os amigos, todas as pessoas de verdade já
foram embora. Só sobrei eu nessa estação de trem lotada, lotada de
gente estranha com hábitos vazios.
Essas rugas todas no meu rosto que essa maldita
luz azul vertical acentua fazem a gente parecer umas árvores. A
velhice seca os nossos olhos. E, se a gente não chora, se não chove
no rosto da gente, tudo seca, esturrica, craquela em sulcos como o
chão seco da caatinga. Tudo morre – menos nós. Quando se fica
velho, volta-se a urinar na cama, volta-se a não ter cabelo nem
dentes, mas a única coisa que a gente não volta é a acreditar que
choro resolve alguma coisa.
Sempre que abro os olhos pela primeira vez, e nem
sempre é dia, vejo tudo se mexendo. Não sei se é minha vista que
se descontrola, ou se o mundo é que convulsiona. A sabedoria só nos
chega quando já não nos serve de nada, e a coragem pro suicídio só
nos chega quando percebemos que não temos mais nada a perder. Mas,
eu tremo demais pra puxar um gatilho.
Ainda assim, ao menos uma vez por dia eu esqueço,
propositalmente, do remédio pro coração. Minha vida está nas mãos
de Deus, mas em uma coisa eu sou melhor que ele: eu sei onde quero
chegar – no fim.
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