quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Digestão


Quando eu não tenho o que fazer, começo a engolir seca cada palavra fria que eu já disse. Então, sofro das dores terríveis da metabolização das minhas terríveis e indigestas palavras e ações. E, como resultado dessa peculiar digestão, pego para mim as lições que acho útil absorver. Por fim, sempre excreto pessoas e sentimentos sem importância.

domingo, 4 de julho de 2010

Times like these...



Todas as horas passadas me são horas perdidas. Não sei se por que as coisas sempre poder ser feitas de outro modo, todas as coisas projetam como que uma sombra desfigurada de como poderiam acontecer se o ângulo de visão fosse outro. Não sei se porque o que é feito não é necessário, e o que é necessário não é sabido até que não se faça, e o que se precisa não se encontra em outro lugar, senão na ausência da coisa.
Somos seres fracos, incapazes de prever com precisão as conseqüências de nossas próprias ações. E assim, perdemos horas, na tentativa de ganha-las produzindo algo notável. As próprias horas são produto de perda de outras horas, na criação de uma forma de se medir um tempo inevitavelmente perdido.
Nos enganaram quando criaram o tempo, e disseram que era essencial, inevitável. Nós criamos o tempo, e nos tornamos escravos dele. O tempo só me deprime, pois marca o quanto da minha vida se esvai nas futilidades que compõem o que chamamos de dia-a-dia.
A vida é uma eterna vaidade da qual nunca escapamos ilesos. Uma eterna perda do tempo que não pode ser ganho. Até porque, nem sequer existe. Todas as horas passadas são perdidas.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Visões.



Amo-te tanto, que quase te traio; mas, com seus heterônimos. Prismas diferentes pelos quais vejo outros vocês. Vocês que imagino cantando em outros tons. Vocês que sonho me amando com outros calores.

Quando te vejo, na penumbra da madrugada fria, se vestindo para ir trabalhar, te imagino ladra. Porque entras sorrateiramente em minha cama, na calada da noite; me assalta suspiros de amor, me furta os prazeres lascivos, e sai pela porta numa brisa, levando meus tesouros consigo. Aí então, amo essa ladra sorrateiramente, como quem ama em segredo alguém que o traiu, ou que o fez algum mal.
E, quando, ao te ver descendo as escadas, contemplo tua beleza quase dolorosa, vestida para irmos ao dancing, te vejo uma condessa, em todo seu esplendor. Quase me curvo, então, quando o reflexo do lustre em tuas faces coradas me traz a luz de uma beleza inimaginável a olhos camponeses como os meus. E, nesse singular momento, te amo de longe, como quem ama uma jóia a qual sabe que nunca poderá tocar, como quem ama uma rainha que nunca saberá que ele existe, como amo você, ao descer as escadas.
Vendo-te assim, de costas, vestindo o avental cor-de-rosa que a vizinha esqueceu em casa, e cantarolando “...these foolish things remind me of you” ao fazer panquecas, te desejo infinitamente a pronta vista. Mas, não te amo como minha mulher, e sim como minha empregada. Calma e submissa como a vassala que és agora, te amo como se fosse a sua obrigação deixar ser amada. Como se fosse o único motivo de estares na minha vida. Como se fosse esse o trabalho que exerces em minha casa, em troca de poder me amar de volta.
Oh, visão luxuriosa, quando te contemplo nua em pêlo, inteira molhada, a olhar para cima e espremer o xampu do cabelo. Nesse momento, és mais que minha parceira sexual, és minha musa. A musa inspiradora dessa poesia romancista que é a minha vida, que nem mais é só minha vida, mas nossa vida. Poesia essa que é escrita com o suor de nossa voluptuosidade noturna. Aí então, te amo com o calor que evaporaria toda essa água, e só não queimaria sua pele morena, preparada pelo Sol para o meu amor, sempre repentino.
Te vendo assim, de outras formas, me obrigo a te amar em outros níveis, em outros aspectos. És o ser completo da minha vida, outrora amarga, e agora, aurora. E assim, vivo. Vivo de te trair contigo mesma, porque te amo de todos os ângulos.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Once, upon a time. . .


[Minha intenção nesse post não é deixar ninguém chorando, com dor na consciência, ou com uma vontade desesperada de doar dinheiro ao Haiti. É só a expressão de uma ideia que eu tive, qualquer semelhança com um texto humanitário é pura coincidência.]


Oi, meu nome é Shakkar, 16 anos, moro no Zimbábue, e tenho AIDS. Ao longo desses anos, nessa maca, já fui acometido de tantas doenças que nem sei mais qual é a que me castiga agora. Mas, de uma coisa eu sei, é dela que vou morrer.
Cansado de não ter o que fazer, há algum tempo me pus a imaginar coisas. Imaginei casas, cidades, penhascos, embalagens, pássaros, janelas. Mas, desde que percebi que ia morrer, só consigo imaginar o céu. Graças à eminência da minha morte, resolvi-me por deixar essa minha utopia para a posteridade.

No meu céu, nenhuma tecnologia existe. Quando se quer tomar banho, Deus manda uma nuvenzinha pela janela do banheiro, e chove em quem quiser se refrescar.
Não falta água para ninguém, pois, em todas as casas, há um manancial de águas cristalinas.
Toda terra é fértil e frutífera, mas nada nasce sozinho, pra que meu povo tenha o prazer de plantar, regar com muito amor e água, e ver crescer em abundância frutas nunca antes vistas.
Os pais são responsáveis, e não mais deixam seus filhos à orfandade, pra que se criem mutuamente, como acontece aqui.
Sabonete e travesseiro não são mais algo raro, e nem o chocolate custa um milhão de libras, porque é tudo gratuito. Assim, ninguém tem razão nenhuma que force a fazer algo, só se faz pelo prazer de fazer, e de ver pronto.
A vida é finalmente vivida em abundância, não mais choro, nem dor; só a calmaria de não ter mais preocupação nenhuma de quando começará uma nova guerra.
Fico ansioso só de pensar. O que me lembra que minha mãe está me chamando. Disse que já chegou minha nuvem, que a água ta morninha-morninha, porque lá em cima faz um frio celeste.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010