quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Estações.

Eu sempre vejo minha vida dividida em estações. Mas, não como as estações do ano, que são ciclicas e tem a ver com a temperatura ou algo assim. Não, estações de coisas, pensamentos, ideias fixas, modas ao meu redor. A estação do axé, que tinha pochette e tal. A estação das surras, que era quando eu vivia apanhando da minha mãe porque era muito teimoso e desastrado. A estação das chuvas, que essa sim tem a ver com a temperatura, mas que também coincidiu com o período em que meu pai foi embora de casa. Enfim, eu estava ouvindo uma música outro dia, e me lembrou de uma dessas épocas: a estação do chicote. Nada a ver com a estação das surras que eu falei antes, talvez até tenha acontecido mais ou menos no mesmo período, mas não tinha relação dessa vez. Essa estação aconteceu quando deu pra as novelas da tevê todas serem de época. Ou quase todas. Sempre. Ou quase sempre. E, em todas elas, tinham os personagens dos escravos. E, quando você via apresentação da novela -- aquele clipezinho no qual, pela única vez, você ia ouvir a música de abertura da novela inteira --, a gente já sabia quem iam ser os escravos, mesmo que não se visse a caracterização deles no clipe. Mesmo que todo mundo aparecesse sorrindo igual nos clipes de apresentação, com os mesmos braços cruzados, na mesma rotação de costas para frente. É que esses atores eram sempre faziam esses papéis. Mesmo quando tinham atores negros novos, a gente já sabia. E não pense que eram todos iguais não, não eram. Sempre tinham funções de escravos diferentes: o escravo bruto, a mucama, o que a filha de alguém sempre se apaixonava, os pais do menininho que não se sabia se seria escravo ou não quando nascesse. E, até dentro dessas especificações, os atores sempre faziam cada um seu papel. Esse negro que tinha mais cara de bruto fazia o bruto, essa outra que tinha mais cara de mucama, mucama; etc. E, bom, era igual nos desenhos né, eu tinha que ser um. Eu sempre era um deles, a identificação da criança com o personagem é mais intensa. É mais sincera, na verdade. O adulto vê um filme, empatiza com um personagem, quer ser aquele personagem, mas não se deixar ser esse personagem; ele é durão, faz bico, até chorar quando alguém importante pra o personagem morre. Aí acaba a farsa. Mas, de criança, eu queria ser um, e só podia ser os que pareciam comigo. Os que tinham cabelo como o meu, pele como a minha, nariz como o meu, boca como a minha. E, diferente dos atores, eu não era sempre o mesmo: as vezes eu era mais o durão, as vezes eu era mais o menininho, as vezes eu era mais o apaixonado. Mas, o que importa? Todos sofriam igual, no chicote. Todos, todos eles. Homens, mulheres, até o menininho. Todos iam pro tronco, apanhar. A novela sempre escolhia mostrar a cara deles sofrendo, o suor. Varias vezes eles não sangravam, era como se coro de negro não sangrasse, ou como se eles não quisessem gastar sangue nessas cenas, sei lá. Sei que eu sempre torcia pra eles se soltarem, igual nos desenhos de super heróis, onde eu sempre era o lanterna verde ou o super-choque. Mas, não. Eles nunca se soltavam. Nem matavam os padrões depois, nem gemiam fazendo um discurso do Mandela ou do Ali ou do Luther King. Nunca. Eles sempre apanhavam igual. Sempre chicote. Sempre igual. Igual outono europeu. Igual estação da linha vermelha.