segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A gente que cresce assim, meio nascido, é sempre diferente mas tem sempre muito igual. Nasce cada um num lugar, mas sempre com um corrego perto; brinca cada um numa rua, mas sempre perde o tampão do dedo porque joga descalço; estuda cada um numa escola, mas sempre uma E.E.; tem cada um uma vida, mas todas na mesma faixa economica no IBGE. São as condições necessárias pra ser meio criado, são os bonecos de isopor que compõem o presépio do menino sem pai.

Por não ter um pai forte pra nos garantir contra os outros, a gente apanha na rua e apanha na escola. E, se não bater de volta, apanha em casa também: mas pelo menos o braço é mais fraco. E é mais fraco não porque deus fez assm. É mais fraco porque o mesmo braço que lavou a roupa, fez comida, limpou nos cantos, arrastou o sofa e carregou o dinheiro pra dentro de casa é o braço que, no fim do dia, vai punir suas safadezas de moleque.

A voz grossa é emprestada de um amigo, o jeito de coçar o saco se rouba de um professor preferido, do tio vem o jeito de alisar o cabelo baixo enquanto olha para uma bunda. Todo favelado sem pai é um homem arlequim, e nessa roupa em mosaico sempre falta um retalho pra cobrir a bunda.

E eu sempre seminu. Cobrindo onde podia com a prosódia de um amigo, os hobbies de outro, a risada de um chefe. Dos homens por quem eu nutria algum afeto ou admiração, tomava emprestados elementos me ajudassem a ver em mim um homem, digno do amor e do tesão de alguem. "Você parece uma mulher falando" era a frase que vez por outra atestava minha constante e miserável falha. Vez por outra.

E hoje eu, falando sozinho, xingando meu celular, no timbre de uma frase minha redescobri minha mae. Nunca ninguém foi capaz de saber quem falava ao telefone, se eu ou ela. E minha mae insistia sempre em afirmar que tinha a voz muito grossa -- tem mesmo. Negava sua feminilidade pra me assegurar minha macheza. Até nisso ela se sacrifica.

E hoje, falando sozinho, xingando meu celular, no timbre de uma frase, descobri que eu pareço minha mãe falando, e pela primeira vez eu conscientemente tive orgulho disso. Me senti como em todas as vezes em que nos arrependemos de ter odiado joias encrustadas em nós, como nosso cabelo crespo ou nossa inteligência.

Eu quero ter uns trejeitos da minha mae, quero levar para a vida as magnificas frases de efeito herdadas da avó espanhola dela, e principalmente cultivar até morrer a sensibilidade. Hoje eu sei que sou digno do afeto e do tesão dos outros, e que se alguém me ve na rua e me imagina nu em suas fantasias pessoais corriqueiras, não é porque eu coço o saco como o meu tio, mas porque eu posso ser tão atraente quanto a minha mãe.

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